Fresta
Em uma fresta na janela do banheiro
entram durante o banho
ar e memórias
entra um cheiro de peido
e a palavra que o gás designa
a oração de são Francisco
dúvidas e fé
Manuel Bandeira
um útero
um punho
um útero do tamanho de um punho
Angélica Freitas comendo alcachofras
e também
Lou Albergaria
entra uma tia fumando cigarros num ano novo em Itanhaém
entram gotas de homeopatia
xarope de hera
o girassol do Alceu Valença
e a morena tropicana
entram pelos ouvidos
pedem um orçamento
na oficina do diabo
e morrem
descendo pelo ralo
com a espuma do xampu,
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As pedras
O mundo está gritando
mas você não escuta porque
está muito ocupado quebrando
as pedras da calçada
vazia
O mundo está gritando
mas você não escuta porque
está muito ocupado limpando
as pedras do terreno
baldio
O mundo está gritando
mas você não escuta porque
está muito ocupado carregando
as pedras da obra
abandonada
O mundo está gritando
mas você não escuta porque
está muito ocupado procurando
as pedras de um rim
operado
O mundo está gritando
mas você não escuta por causa
das pedras
das pedras que
só
você
vê
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Hora
Chegou a hora de pararmos de brincar
que somos soldados de plástico do forte apache;
chegou a hora de pararmos de pensar
que nossas palavras sejam as pedras do asfalto;
chegou a hora de pararmos de crer
que nossos discursos dos almoços de domingo ecoarão;
chegou a hora de pararmos de pregar
missais romanos para os periquitos empoleirados nos parques;
chegou a hora de pararmos de escrever
manifestos sociais à giz nas avenidas de madrugada;
chegou a horar de pararmos de perder
nosso tempo contando as letras de palavras proparoxítonas;
chegou a hora de pararmos de fingir
que nossos gritos de surpresa e dor são sinceros;
chegou a hora de pararmos de rir
diariamente das formigas que insistem em invadir açucareiros;
chegou a hora de pararmos de insistir
em erguer pontes estaiadas com cabos de macarrão instantâneo.
Você não está escutando
os ruídos que os pés descalços estão fazendo
nessa estrada de terra seca?
Você não está vendo
as sombras que as mãos erguidas estão produzindo
nessa parede de cimento queimado?
As horas mudaram
como mudam as nuvens de forma quando
depois de um terrível calor
se avizinha uma tempestade.
Olhar as mudanças com olhos de microbiologista
e operar os vindouros com mãos de carpinteiro
é a verdadeira arte que acontece agora.
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Solidão
quero reinventar a palavra solidão
palavra que não descreve o fátuo
ato de desejar e desistir
em meio a tantos amigos de ocasião
quero reinventar a palavra solidão
que não serve mais para dizer
o que é que paira no ar
depois de algumas horas de transformação
quero reinventar a palavra solidão
que está desgastada e insuficiente
e que não mais nomeia o espectro
de um tempo de isolamento e distração
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Infância
quando eu juntar todas as letras
que forma a palavra infância
infância não mais será
são poucos os tipos
da palavra
como são poucos os anos
do principiar
mas são ambos os casos
um montante suficiente
para uma nova organização
do que em essência ainda sendo
o que foi no começo
agora
outra coisa
será
talvez o mosaico que surja
primeiro não signifique muito
mas a raiz decomposta
estará lá
estarão lá a infância
os anos
e a palavra
bastará apenas
procurar
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o tempo
passa como
o balanço de
uma
rede
o tempo permite
quebrar o
tempo em
grãos e
sementes
o tempo
fala como o
acalanto de
namorados
o tempo é
uma flanela
nos dias
frios
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uma garrafa de vinho
com uma xícara no gargalo
como um soldado
me vigiando os paços
dois bambus crescendo
numa garrafa de suco
jiboias em garrafas de cerveja
e um mamoeiro em
um vaso de barro
composição de uma florestinha
contra a selva de
canteiros de obra
que nos cerca
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Lucas Grosso é o autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, no prelo). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.
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